A última mensagem aos voluntários.

Esta mensagem foi por ele gravada numa cassete, no Hospital Foch, em Suresnes, no dia 8 de Fevereiro de 1988, nas vésperas da sua operação. O padre Joseph veio a morrer no dia 14 de Fevereiro do mesmo ano.

“Nas vésperas de uma operação como aquela que vou fazer, aliás vou com toda a confiança, não ofereço resistência e, como já disse à Gabrielle, à senhora de Vos, à Mary e a todos os que me vieram visitar : quando se está assim como eu, por agora, entre as mãos das enfermeiras e dos médicos, sinto que vivo o que vivem os pobres, no seu dia a dia, pois estão à mercê, (a palavra é forte demais) vêem-se obrigados a ter sempre em consideração o parecer, a opinião ora deste ora daquele, no que toca à sua própria vida. Quando somos obrigados a depender de toda a gente, devemos fazer-nos pequeninos e, sobretudo, não dar nas vistas.

Posso dizer-vos que nos devemos manter muito, muito perto das famílias e permanecer fiéis ao nosso combate familiar. Não porque sejamos pessoas de princípios, mas sim porque, se a família for nossa aliada, será ela que nos vai permitir realizar a sociedade de direito que procuramos. Devemos, sobretudo, manter-nos muito, muito perto das famílias mais desfavorecidas, pois temos sempre a tentação de nos apoiarmos nos elementos mais dinâmicos, mais corajosos, mais inteligentes. É evidente que devemos apoiar-nos neles, mas não nos devemos deixar comandar nem possuir por eles. Eles não devem tornar-se num obstáculo que se atravessa entre os mais pobres e nós. Devemos estar atentos a que também eles se tornem “fazedores” de direito, no meio de seus irmãos e irmãs, no seu próprio meio. Para evitar que nos deixemos levar por acções dispersas, sem rei nem roque, devemos ter sempre presente a seguinte questão : a acção que conduzimos permite aos mais desfavorecidos sair da situação em que se encontram e tornar-se agentes dos direitos humanos ?

Não temos que ter medo de ser ousados, mesmo se pensamos (o que aliás está certo) que a população mais pobre não é capaz, logo de entrada, de assumir o que lhe apresentamos. Isto exige, muito simplesmente, que avancemos por etapas. Ora não é possível avançar por etapas sem programar. Temos que saber qual é o nosso objectivo e quais os meios de que dispomos para o atingirmos. Tornar as pessoas livres, livres no interior da sua própria sociedade, como agentes de liberdade para os outros, isto exige que transmitamos os valores da cultura que é nossa, os valores que dão alma às nossas vidas. Isto pressupõe que transmitamos os conhecimentos que são nossos, que os partilhemos e que inventemos meios que permitam esta comunicação, esta partilha, para que as famílias mais pobres os possam assumir.

Nós não podemos ser pessoas que trazem consigo unicamente ideias e uma linguagem, devemos também ser pessoas que trazem nelas a plenitude do homem, a harmonia do homem e, por conseguinte, pessoas que trazem consigo a arte, a poesia. Não podemos limitar-nos a ser gente de técnicas. Por esta razão, devemos impregnar-nos de tudo o que os homens nos legaram de mais acabado como expressão musical, como pintura…É necessário pôr as pessoas no centro da natureza, levando-as a amá-la, a pressentir a harmonia da terra e do céu.

Na medida em que a fé nos anima, devemos também projectar as famílias mais pobres no mundo invisível, no mundo do infinito, de maneira a que se tornem membros, não só de uma comunidade ou de um bairro, mas também do universo e que aí sejam actores de liberdade.

Isto requer que estejamos, realmente, integrados no mundo, que amemos o mundo. Não se trata de agir como cegos, como quem não vê os defeitos dos homens. Mas devemos ter sempre em mente que todo o homem tem direito à nossa confiança, enquanto não tivermos provas do contrário. Devemos interessar-nos pelos debates políticos, filosóficos ; devemos amar os homens que se batem por uma fé, por um ideal. Devemos tomar parte na esperança de todos os que lutam, sem nos deixarmos tomar por parvos, sem esquecer que é preciso lembrar-lhes, constantemente, que o mais pobre deve ocupar um lugar no seu combate e no seu pensamento.

Nada disto se pode atingir, se pode obter sem um grande esforço da nossa parte. Um grande esforço para conhecermos a população, as famílias mais pobres, para conhecermos a sua história, o seu meio, as suas origens, a história do que vivem, presentemente, no seu dia a dia.

Devemos procurar comungar naquilo que as famlias trazem em si de mais profundo … não estou a falar de uma comunhão superficial, mas de uma comunhão em profundidade. Temos à nossa disposição os instrumentos que é preciso empregar, utilizar : a psicologia, a sociologia, a economia…

Não podemos introduzir os mais pobres no mundo de hoje e de amanhã, se nós mesmos o não estamos. É verdade que não temos a ciência infusa, mas não devemos neglicenciar nenhuma delas. Pois querer construir homens livres é querer dar-lhes, é permitir-lhes dominar com mestria os instrumentos de que os homens se têm servido, ao longo dos tempos, para poderem criar um mundo mais justo, mais igualitário, uma terra onde a paz seja vivida como um ideal e, sobretudo, como uma realidade entre uns e outros, já que todos nós fazemos, no nosso dia a dia, a experiência, sempre renovada e avaliada, do amor entre todos.

Conhecer implica ouvir, escutar e escrever. Mesmo se não nos limitamos a ser pessoas que escrevem, que lêem e tomam a palavra, temos, todavia, que ser pessoas que transmitem pela escrita o conhecimento, a sabedoria que nos vem das famílias mais pobres. Temos que ser pessoas que tomam a palavra, para que os homens que encontramos sejam levados a lutar por uma justiça a restituir aos mais pobres, para que a justiça seja, verdadeiramente, restabelecida em terras de miséria. Além disso, também devemos ler regularmente, para nos formarmos.

O nosso tempo deve pertencer à população mais pobre. É normal que quem trabalha tenha férias. É, pois normal que também nós tiremos férias. Não é nada normal que hesitemos em aproveitar daquilo que é indispensável aos outros para se repousarem e que constitui um direito.

Todavia, o nosso tempo, como para os que se amam, não nos pertence. E, se guardamos algum tempo para nós, deve ser, para que o enriquecimento que daí nos vem possa enriquecer os mais pobres. Conhecer a população mais pobre, procurar instruir-se, cuidar da nossa formação pessoal, dar o nosso tempo e, para aqueles que rezam, dar a nossa oração : eis o que nos deve ocupar. É importante que vivamos num clima de espiritualidade. Quando falo de espiritualidade, não me refiro à escolha desta ou daquela religião, embora seja importante que tenhamos uma fé ; se não temos fé em Deus, que, ao menos, a tenhamos nos homens.

Temos que estar possuídos pela exigência de criarmos um clima de espiritualidade, porque o espírito deve habitar-nos. O espírito é uma espécie de sentido do outro, uma espécie de comunhão com o outro e, quanto mais o outro é pequeno e fraco tanto mais o espírito que nos habita o torna importante e grande para nós. Falar de espiritualidade implica, imediatamente, fazer referência à religião, às relações com Deus. Podemos dizer que isto é a fina flor da espiritualidade, o supra-sumo. Mas também temos que viver uma espiritualidade de relação entre homens, o que significa uma certa maneira de olhar os homens, de nos comportarmos para com eles. Do mesmo modo que nos pomos em estado de contemplação e de oração em presença de Deus, que tentamos fazer silêncio e aproximar-nos o mais possível de Deus para fazermos um só com Ele, como alguém disse um dia : “Eu avirso-O e Ele avisa-me.”

Assim, devemos ter a espiritualidade de nossos irmãos. Quer isto dizer que temos que conseguir viver de uma determinada maneira com os outros, que os outros contam para nós, que nos identificamos com eles, porque são como nós, pois travam exactamente o mesmo combate, têm as mesmas dificuldades, as mesmas dúvidas, os mesmos sofrimentos, as mesmas mágoas e também as mesmas esperanças e alegrias que nós. A espiritualidade consiste em apurar o nosso espírito ; é desprender-se do que é secundário para nos agarramos ao que é absolutamente essencial, ao essencial de nós mesmos, ao essencial dos outros, ao essencial do combate. A espiritualidade é ter confiança na fraternidade, como base fundamental do êxito de todos os nossos combates ; é o facto dos mais pobres nos seguirem, na medida em que virem que somos, verdadeiramente, unidos, que nos amamos, verdadeiramente ; é uma maneira de sentir, uma maneira de viver, uma força…

São os pobres que nos reunem. Para os que têm fé, é Cristo que se aproxima de nós, quando nos aproximamos dos pobres. É Cristo que fala connosco, quando falamos aos pobres. É Ele que sente o que sentimos, que carrega juntamente com os pobres o peso da miséria, do sofrimento. Penso que é isto a espiritualidade. Há, por exemplo, a espiritualidade franciscana que tem como base a meditação, a reflexão, a pobreza. Um franciscano, que o é, deve ser pobre, profundamente pobre. Não lhe pode bastar ser pobre, pois tem que ir mais além ; tem que desejar a pobreza com ardor. São Francisco de Assis falava mesmo em desposar a pobreza, a Dama Pobreza, como ele dizia. Queria, assim, mostrar que a pobreza, mais do que um estado, é uma pessoa ; queria mostrar que Cristo se identificava com a pobreza e que ser pobre, mais do que parecer-se com Cristo, é desposar o próprio Jesus, em carne e osso, na pessoa do pobre. Ele que na Glória de Deus Pai, assume todo o cosmos, tudo o que existe como sofrimento, dor, desespero, doença ; Ele que assume tudo o que existe como rejeição, como ferida.

Penso que podemos dizer que é o pobre, o mais pobre, o mais sofredor, o mais desamparado, o mais rejeitado, o mais abandonado quem nos reune a todos. De igual modo, quando dizemos que somos voluntários, não nos referimos apenas a um estado que aceitamos ou que escolhemos para estarmos ao dispor dos mais pobres, para sermos instruídos por eles. Diga-se que, por vezes, nos ensinam coisas que nos deixam de boca aberta. Não podemos limitar-nos a dizer que nos privámos, que renunciámos a uma promoção social, a uma carreira cheia de êxito, pois ser voluntário quer dizer muito mais do que isso. Quer dizer que fizemos dos pobres nossos irmãos e irmãs. Os seus filhos são nossos filhos. Vivemos em constante comunhão com eles. Estão presentes em nós. Reconhecemos e contemplamos a sua presença, na medida em que os consideramos como sendo os nossos mestres, o nosso modelo, mas também a nossa angústia, o nosso sofrimento, a nossa inquietação. O cuidar da sua libertação habita-nos, em permanência. Para nós, a espiritualidade é isto : estar em espírito, ter o nosso espírito apanhado pela população mais pobre e encarar tudo o que fazemos, tudo o que dizemos como uma grande oportunidade, uma grande esperança a oferecer-lhe.

No fundo, quando dizemos que estamos habitados pelo espírito, isso quer dizer que estamos habitados pela população, pelas aspirações profundas que lhe vão na alma. Para os que, dentre nós, têm fé são os pobres que nos devem conduzir a Cristo. São Francisco, ao ser a pobreza em pessoa, revestia-se de Cristo. Aliás, esta é uma das razões que nos leva, muitas vezes, a chocar as pessoas, porque não conseguem aceitar que Cristo se tenha identificado com os mais pobres. Hoje, a identificação de Cristo com o pobre é coisa aceite, quando se diz : esta identificação é o prisma, o ponto de vista ideal para se ver Cristo, pois são os mais pobres quem nos conduz a Cristo, exactamente, como Ele quis ser, a Cristo na maior das nudezas, à mercê do maior dos sofrimentos, do maior dos abandonos, da mais total das exclusões… “

Padre Joseph Wresinski

Tradução de Carlos Rodrigues

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