Estado de urgência para as crianças

As crianças e as famílias da miséria

Gostaria de partilhar convosco algumas reflexões tendo, no entanto, o cuidado de não criar diferenças entre as famílias vindas dos países em vias de desenvolvimento e as que residem nos países industrializados. Com efeito, tanto as famílias de Nova Iorque ou de Chicago que se refugiam nas ruas das suas cidades, como as famílias que em França se abrigam dentro de camiões desativados, instalados junto de aterros sanitários, de uma autoestrada ou de um cemitério, assim como as famílias que, em países em vias de desenvolvimento, se agarram às encostas de uma colina, à borda de uma ravina ou num terreno pantanoso situado na orla de uma baía, todas elas nos dirigem a mesma mensagem.

Todas estas famílias são repelidas e expulsas das zonas residenciais decentes. Pior do que isso, elas nem conseguem arranjar um lugar nos bairros sociais, nas favelas, nos bairros de lata. Na realidade, elas são empurradas para além destas zonas de pobreza ficando assim desterradas na miséria, por causa da sua extrema pobreza. É por esta razão que nenhuma cidade sabe ao certo o número exato destas famílias. Mas pior do que tudo isto, elas não figuram nem fazem parte dos registos administrativos, nem das estatísticas nacionais. Elas não ocupam lugar algum nas preocupações prioritárias dos responsáveis políticos. Em suma, elas não existem para ninguém. Daí resulta que as crianças destas famílias em grande pobreza e sem uma existência reconhecida tanto nos países industrializados como nos que se encontram em vias de desenvolvimento têm em comum o facto de estarem privadas de futuro.

A criança que vende nas ruas ou que mendiga nos corredores do metropolitano das nossas capitais, a criança do Terceiro Mundo que ganha o pão para a sua família, a criança que passa a noite a dormir junto ao matadouro, junto à estação dos caminhos de ferro, junto ao mercado e que, ao nascer do sol, vai remexer o lixo dos aterros sanitários, indica-nos até onde nós devemos alargar as fronteiras das nossas políticas, dos nossos programas. E para conseguir isto, até onde nós devemos alargar os limites do nosso olhar, dos nossos conhecimentos.

Os mais pobres escapam ao olhar da comunidade internacional

Ainda hoje, temos que admitir que há grupos inteiros de população que se encontram sós a tentar sobreviver, a tentar salvaguardar a sua esperança contra ventos e marés. Obrigados a viver só com as próprias forças, ajudados por vezes por pequenas ONG, estas populações escapam sobejamente ao olhar e às análises da comunidade internacional.

Sendo assim, o que sabemos nós verdadeiramente das crianças e das famílias ditas “sem-terra”, muitas vezes sem raízes, condenadas a vaguear sem destino pelos caminhos fora, fugindo da fome, procurando um trabalho?

O que sabemos nós destas crianças, destas famílias que, sem meios, sem bagagens se deslocam para as cidades, na esperança de encontrarem aí, já que não seja um acolhimento, que seja pelo menos um pouco de dinheiro mendigado?

O que sabemos nós destas famílias sem trabalho, sem telhado nem recursos, desta população instável, mal identificada que permanece na periferia das cidades, habitando em zonas donde, uma vez mais, serão expulsas pelo buldózer, à medida que a urbanização avançar?

O que sabemos nós das famílias sem-abrigo vagueando sem destino através da Europa Ocidental ou da América do Norte? Das famílias destroçadas, separadas encontrando-se mãe e filhos num centro de acolhimento e o pai num albergue para homens?

É destas famílias destroçadas, desfeitas, famintas que nos chegam as crianças a que nós chamamos “meninos da rua”, identidade esta que deveríamos recusar.

Será admissível que estas crianças nascidas, como toda e qualquer criança, de pleno direito de uma família, duma etnia, duma cidade, duma nação sejam assim tratadas, identificadas? Sejam elas naturais de Amesterdão ou de Bogotá, do Extremo Oriente ou do Sul do Sara? Será que sabemos o que virão a ser uma vez adultas e, por conseguinte, capazes de fundar elas próprias uma família?

A Unicef, sei-o por experiência, nunca aceitou abandonar estas crianças, nunca desistiu de nos chamar a atenção para a existência delas.

Também o Movimento Internacional ATD Quarto Mundo em nome das famílias destas crianças não desiste de chamar a atenção para a urgente obrigação de toda a comunidade internacional de ir efetivamente à procura, ao encontro destas famílias, destas crianças para as reconhecer e acompanhar.

É aí que a grande Aliança proposta pelo senhor James Grant, Diretor Geral da Unicef, ganha todo o seu sentido. É urgente que, tanto vós como nós, nos comprometamos com esta Aliança, aqui e agora. É necessário que nos apliquemos com esmero de modo a tornarmos esta Aliança credível. Oxalá que, graças a Ela, nós consigamos dar, através dos programas da Unicef, prioridade a estas crianças e às suas famílias que até agora nunca tiveram o usufruto deles. É uma questão de Direitos Humanos. Com efeito a miséria é uma violação dos Direitos da Criança no seu conjunto. É, pois, indispensável que declaremos o estado de urgência contra a miséria, um estado de urgência para as crianças.

O que fazer para que esta Aliança cative o mundo inteiro?

 Esta Aliança pode conquistar o mundo. Até pode galvanizar muita gente, muitas organizações, se a Unicef puser mãos à obra, evidentemente com a ajuda de todos nós, para que esta Aliança se desenvolva de tal modo que se manifeste amplamente em benefício dos mais pobres.

Sabemos muito bem que esta Aliança vai permitir o aumento da percentagem das crianças vacinadas até chegar aos 80%. Também irá permitir salvar mais crianças da desidratação, assim como irá garantir uma melhor alimentação a várias dezenas de milhões de crianças. No entanto, sem o esforço de todos, o que será feito dos 20% que restam? É muito provável que, uma vez mais, sejam as famílias mais resistentes, as famílias mais capazes de compreender rapidamente, as famílias um pouco mais integradas na comunidade que serão as primeiras a beneficiar de tudo isto. É o curso normal da vida. Quando nos encontramos em presença do sofrimento, da fome, da doença atacamos o mais urgente, o mais eficaz.

Nada disto é uma desonra, antes pelo contrário. No entanto, agir assim condena inevitavelmente 20% dos mais pobres do mundo a novos abandonos.

O grande ponto de honra desta Aliança será de quebrar este curso irrevogável de acontecimentos que atinge a grande pobreza. Quebrar este curso que cria isolamento, que mata e que acaba por tornar nulos e sem valor os Direitos Humanos, os Direitos da Criança.

Padre Joseph Wresinski

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