O pensamento dos mais pobres em um conhecimento que leva à luta

Observações introdutórias

Ao encontrá-los esta manhã dentro das paredes da UNESCO, e ao agradecer-lhes por terem respondido ao nosso chamado para se reunirem neste mês de dezembro, que já é um mês muito ocupado para cada um de nós, lembro que vocês, os acadêmicos, os pesquisadores científicos, os especialistas, têm respondido fielmente aos apelos do Movimento  ATD Quarto Mundo há quase 25 anos. Quase um quarto de século de lealdade, de preocupações e esperanças compartilhadas por vocês e pela comunidade da pesquisa que vocês representam.

Nosso Movimento, que criou seu próprio Instituto de Pesquisa em 1960, também criou a sua própria história de acolhimento e colaboração com uma rede internacional de pesquisadores externos. Eles vieram, primeiro como amigos, depois como colaboradores individuais. Em seguida, a partir de 1964, todos nós sentimos a necessidade de formar um grupo, de falar e agir como um grupo, tanto para fortalecer um ao outro como para ter mais peso no mundo ao nosso redor.

Assim, não é uma novidade na história do Movimento  se reunir como um grupo, como um Comitê Permanente, em dezembro de 1980. Exceto talvez pela noção de permanência. Pois embora todos estivéssemos de acordo há algum tempo, foi somente em outubro de 1979 que proclamamos juntos e publicamente a necessidade de ver nascer e se consolidar, na vida pública internacional, um grupo verdadeiramente duradouro, assumindo de forma contínua uma função indispensável em nossas comunidades nacionais e internacionais.

Mas não é da história do atual Comitê Permanente sobre Pobreza e Exclusão nem da necessidade de que ele seja duradouro que eu queria falar com vocês, senão lhes dar as boas-vindas – de todo o coração – nesta manhã. Discutimos tudo isso no Comitê e em seus subgrupos desde outubro de 1979, e a essência de nosso pensamento comum está refletida nos documentos escritos do Comitê.

O que eu gostaria de falar esta manhã é sobre as funções do Comitê, ou mais precisamente, uma de suas funções. Trata-se de uma função que nenhum dos grupos que precederam o seu em nosso Movimento (e que, tanto quanto sei, nenhum corpo no mundo) jamais assumiu. É função a (e eu diria de boa vontade o dever) dos pesquisadores no âmbito da pobreza, de deixar espaço para o conhecimento que os próprios mais pobres têm de sua condição. Dar lugar a esse conhecimento, reabilitá-lo como único e indispensável, autônomo e complementar a todas as outras formas de conhecimento, e ajudá-lo a se desenvolver. E a esta função, como vocês podem imaginar, soma-se outra: a de abrir espaço, reabilitar e ajudar a consolidar o conhecimento que aqueles que vivem e agem entre e com os mais pobres podem ter.

Certamente esta não é a primeira vez que falamos com você sobre estas duas facetas de um conhecimento global do qual a sua, a do observador externo, é a terceira. Não é a primeira vez que falamos sobre isto, mas em vista do trabalho que nos espera durante estes três dias, e também em vista do trabalho que começamos a empreender a médio prazo, gostaria simplesmente de me dar a liberdade de esclarecer algumas ideias que o Movimento possui sobre este assunto. Ideias que nasceram e amadureceram ao longo dos 25 anos em que as pessoas mais pobres e as pessoas de ação o conheceram. Permitam-me fazer uma pausa por um momento.

I – Conhecimento universitário da pobreza, um conhecimento complementar a outros

As perguntas que nosso Movimento se faz e que nosso Comitê também se faz são, me parece, as seguintes:

– Que conhecimento necessitam as pessoas mais pobres?

– Que conhecimento necessitam as equipes de ação?

– e que conhecimento necessitam nossas sociedades nacionais e a comunidade internacional para combater eficazmente a pobreza e a exclusão?

Poderíamos dizer, sem dúvida, que em nossas próprias vidas e em nossas próprias lutas, atravessamos um período na história em que a resposta à pergunta “que conhecimento?” era, em grande medida, o conhecimento acadêmico. Muitos de nós esperávamos que o conhecimento mais útil para a luta e, portanto, para a promoção de políticas e legislação, fosse o tipo de conhecimento que pode ser construído nas universidades e outras instituições de pesquisa. Esperávamos muito daquela parcela de conhecimento à qual podem ter acesso os pesquisadores, os acadêmicos, os cientistas em uma posição de observação, mas também uma condição de vida estranha à dos menos favorecidos.

Este conhecimento foi altamente valorizado devido a seu método, seu rigor, sua objetividade ou sua “neutralidade”. Estes eram aspectos tranquilizadores para aqueles que, diante da imensa complexidade dos problemas e, também, diante da forma subjetiva com que os políticos lidavam com eles e os apresentavam, queriam encontrar uma verdade objetiva que pudesse orientar uma ação lúcida e verdadeiramente eficaz para os pobres.

A Universidade teve assim seu apogeu como garantia de segurança diante de problemas tão difíceis de entender; seu apogeu como refúgio para aqueles que não queriam ser confundidos ou enganados por ideologias, sejam elas “dominantes” ou “dominadas”. Houve um tempo em que nós mesmos talvez quiséssemos fazer isso com nossas universidades. Provavelmente não estávamos errados, mas também não estávamos inteiramente certos.

Entretanto, não é a descoberta geral da não-neutralidade, da não-objetividade da ciência e, em particular, das ciências humanas e sociais, que nos faz errar hoje. Não é o conhecimento de que todas as nossas ciências e metodologias de pesquisa estão agora manchadas pela ideologia que nos faz dizer que não estávamos muito certos. Estes são problemas interessantes, mas secundários, em nossa opinião.

O problema básico que não reconhecemos bem e que ainda não superamos é que o conhecimento acadêmico sobre a pobreza e a exclusão – como de qualquer outra realidade humana – é parcial. Não temos dito, ou mesmo nos compreendido o bastante, que só pode ser um conhecimento indireto e informativo, que lhe falta o domínio da realidade e, portanto, falta o que faz com que o conhecimento mobilize e provoque ações.

Muitos de nós sentimos, ocasionalmente, uma certa decepção ao ver um ou outro de nossos estudos permanecer sem efeito. Talvez não tenhamos pensado o bastante, então, que a pesquisa acadêmica no sentido estrito deve necessariamente dar origem a uma forma de abstração, a uma imagem da realidade, vista de fora e traduzida em termos gerais que não refletem mais o sentimento, a cor das coisas que levam os homens a querer agir para outros homens. Não pensamos o suficiente sobre o fato de que, no conhecimento global sobre pobreza e exclusão que deve, ao mesmo tempo, informar, explicar e mobilizar, a pesquisa científica deve se reconhecer como um componente entre outros: o componente informativo, “sem vida”, pode se dizer, porque permanece sem vida enquanto não encontrarmos essas duas outras partes do conhecimento ao seu lado:

– o conhecimento que possuem os pobres, os excluídos que vivem, de dentro, tanto a sua condição quanto a realidade do mundo que lhes é imposta,

– e o conhecimento daqueles que atuam entre e com as vítimas em áreas de extrema pobreza e de exclusão.

Apanhados na armadilha de uma sociedade que acreditava na supremacia do conhecimento universitário, nossas universidades acreditavam, e nós acreditamos com elas, que era do conhecimento académico que o mundo precisava para combater a pobreza. E quando os estudos e pesquisas desapareciam nas gavetas dos políticos e das administrações, sentíamos uma real frustração. Dissemos que foi por razões políticas, por falta de vontade política, que os melhores estudos não conduziram a decisões favoráveis aos pobres. Isto era verdade, exceto que talvez não fosse apenas por culpa dos políticos, mas também nossa, dado que trabalho não era suscetível de despertá-los para a luta.

Em nenhum momento – creio poder dizê-lo – as universidades pensaram que a ineficácia política de suas pesquisas poderia ser atribuída ao fato de que o conhecimento assim construído era instrutivo, mas não necessariamente convincente, e que a parte adicional convincente não poderia ser fornecida pelo próprio pesquisador acadêmico, mas apenas pelos pobres e pelos homens de ação.

II – Dificuldades de comunicação entre os diferentes tipos de conhecimento 

É verdade que muitos acadêmicos incluíram estas duas fontes de conhecimento em seu trabalho: o dos pobres e o dos homens de ação. No entanto – e não é este o ponto principal? – eles não os reconheceram como autônomos e a serem perseguidos por si mesmos, pelos próprios autores. Os pesquisadores fizeram deles prematuramente uma fonte de informação para suas pesquisas, em vez de vê-los como um autêntico processo de pesquisa em si, um sujeito de apoio e não um objeto de exploração. De certa forma, eles os subordinaram à sua própria abordagem como observadores externos da vida dos pobres, e externos ao trabalho feito com eles. Eles queriam, de boa-fé, explorar o conhecimento dos pobres e o conhecimento dos que estão em ação para fins de pesquisa acadêmica. Assim, sem se darem conta, eles se desviaram de seus próprios conhecimentos objetivos que não lhes pertenciam. Talvez mais seriamente, sem querer ou mesmo saber, esses pesquisadores têm frequentemente perturbado e até mesmo paralisado o pensamento de seus interlocutores. Isto se deu principalmente porque não reconheceram um pensamento autônomo, um conhecimento autônomo com seu próprio caminho e objetivos.

Não ter entendido isso às vezes causou problemas de comunicação entre as populações do Quarto Mundo e os pesquisadores, entre os pesquisadores e os homens de ação. No que diz respeito à comunicação com grupos de população pobres, estou convencido de que mesmo a observação participante de antropólogos ou etnólogos envolve este perigo de exploração, de desvio, de paralisia do pensamento dos pobres. Por ser uma observação cujo objetivo é externo à situação vivida pelos pobres, uma situação que eles mesmos não tinham escolhido e nunca teriam definido à maneira do pesquisador. Esta observação não é, portanto, realmente participativa, pois a reflexão do pesquisador e a da população sob observação não perseguem os mesmos objetivos.

Isto não é um problema de método, mas uma questão de condição de vida; não pode ser resolvido com a adoção de outros métodos, mas apenas mudando de condição. Tal como está, esta observação, que provavelmente não perturbaria o pensamento de um grupo com um bom domínio de pensamento e cultura, é susceptível de perturbar o pensamento de grupos pobres que o dominam menos.

É desnecessário dizer que um problema análogo surge com relação à colaboração entre pesquisadores e os homens de ação? As dificuldades não têm sido , talvez, devidamente analisadas tampouco. Tem sido dito que as equipes de ação têm dificuldade em colaborar com a pesquisa porque não encontram interesse nela, porque desconfiam do olhar escrutinador do pesquisador ou de sua incapacidade de compreender a realidade humana e seus caprichos na vida cotidiana. Foi até mesmo dito que a colaboração foi mal estabelecida porque faltava às pessoas de ação pensamento lógico, que agiam em nome de suas intuições e impressões, e não em nome de uma reflexão racional.

Pode haver alguma verdade nestas explicações, mas me parece que elas não chegam ao âmago da questão. O problema fundamental é que o homem de ação, para ter uma contribuição válida a oferecer à pesquisa acadêmica, deve ser considerado antes de tudo, não como um mero informante, mas como um pensador que tem, acima de tudo, que realizar, até o fim, sua própria pesquisa sobre os objetivos que se fixou a si mesmo.

Aqui novamente, temo que mesmo os pesquisadores engajados em analisar uma ação e avaliar seus resultados corram o risco de ir pelo caminho errado. Com demasiada frequência, eles chegam depois que o dado foi lançado, para depois compreenderem uma situação de ação que lhes é totalmente estranha. Esta situação é contrária a qualquer experiência que eles mesmos possam ter vivido, está repleta de insegurança que eles têm muita dificuldade de imaginar e sobre a qual eles podem ter poucas intuições. Eles só podem tentar compreender tal situação e seus efeitos na medida em que eles mesmos tenham compartilhado e experimentado a insegurança, na medida em que puderam participar do desenvolvimento do pensamento da equipe de ação, adotando os próprios objetivos desse pensamento.

Dito isto, meu objetivo não era apontar a fragilidade do conteúdo dos estudos e pesquisas universitárias resultantes destas dificuldades de comunicação. Meu objetivo era ressaltar que todos estes estudos e pesquisas, por mais excelentes que sejam, não poderiam proporcionar um conhecimento global. O pesquisador sozinho é incapaz de fornecer este conhecimento global que é necessário para combater efetivamente a extrema pobreza. Gostaria de voltar por um momento às outras duas partes do conhecimento que deveriam ser complementares às da universidade, mas que não podem ser constituídas como tal a menos que sejam autônomas e possam chegar a ao final elas mesmas.

 III – O conhecimento dos mais pobres, um jardim secreto

Permitam-me dizer algumas palavras, sobretudo, sobre o conhecimento e o pensamento das famílias do Quarto Mundo. Seu conhecimento e seu pensamento não se referem apenas à sua própria situação de vida, mas também ao mundo ao seu redor, sobre o que é esse mundo e o que deveria ser para que os mais fracos não sejam mais excluídos.

Certamente não há necessidade de lembrar às pessoas que pensar e saber são atos, e que todo homem realiza estes atos. Não importa o que a vida lhe tenha proporcionado, todo homem pensa, conhece e se esforça para entender, todo homem realiza atos para um objetivo que é seu objetivo, e seu pensamento é organizado de acordo com esse objetivo. É desta forma que cada ato de pensamento é provavelmente um ato do ser humano para sua própria libertação e repito – pois é isto que o Movimento está testemunhando em muitas áreas de miséria no mundo: cada ser humano, cada grupo também, tenta concretizar este ato. Por mais fracos que sejam os meios de pensamento lógico, os meios de análise que receberam, cada ser humano, cada grupo, torna-se um pesquisador, em busca de sua independência, em busca de uma compreensão de si mesmo e de sua situação, permitindo-lhes deixar de lado inseguranças e medos, controlar seu destino, em vez de sofrê-lo e ter medo dele.

Aqueles que pensam que as pessoas totalmente empobrecidas são apáticas e, portanto, não pensam, que se acomodam à dependência ou ao mero esforço de sobrevivência do dia a dia, estão muito enganados. Eles ignoram as invenções de autodefesa das quais os mais pobres são capazes para escapar da influência daqueles dos quais dependem, a fim de salvaguardar uma existência própria, cuidadosamente escondida atrás da vida que exibem como uma cortina; atrás da vida que exibem a fim de iludir o olho externo. Eles ignoram o esforço desesperado de reflexão e explicação deste homem que continua se perguntando: “Mas quem sou eu? Quem continua dizendo: “Por que estou sendo tratado assim, como um covarde, como um cão, como um patife? Eu sou um fracote?” E que, com um doloroso esforço de reflexão, nunca deixa de ressurgir por debaixo destas falsas acusações que são tantas identidades falsas que lhe foram dadas, repetindo para si mesmo: “Não, não sou um cão, não sou o tolo que me fizeram ser, sei coisas, também, coisas que eles nunca entenderão”.

Nesta afirmação, que sempre ressurge depois de todas as dúvidas, este homem monótono, exausto no corpo e na mente, está infinitamente certo. Ele sabe de coisas que outros talvez nunca entendam, ou até mesmo imaginem. Seu conhecimento, por mais mal construído que seja, é sobre o que significa ser condenado por toda a vida ao desprezo e à exclusão. Ela abrange tudo o que significa em termos de eventos, em termos de sofrimento, mas também em termos de esperança, de resistência diante desses eventos. Trata-se de um conhecimento do mundo ao seu redor, o conhecimento de um mundo cujo comportamento em relação a pessoas pobres como ele, só ele conhece. O melhor pesquisador do mundo não pode imaginar estas coisas e, portanto, não pode formular as hipóteses corretas e fazer as perguntas certas. Dissemos que o pesquisador está diante de um campo de conhecimento que ele não pode controlar. De certa forma, ele se depara com o jardim secreto dos mais pobres. Ninguém pode entrar nela, a menos que mude sua situação de vida para poder fazer com que as pessoas mais desfavorecidas falem com confiança e para entender o que elas dizem. Como está, o pesquisador não tem meios para apreender o conteúdo deste jardim secreto, mas também e sobretudo, não tem o direito de fazê-lo.

Não há ninguém que tenha o direito, mesmo em nome da ciência, de perturbar outro homem em seu esforço talvez desajeitado, mas implacável, para desenvolver um pensamento libertador. E nenhum pesquisador tem o direito de agarrar a oportunidade dos esforços das pessoas mais pobres para se libertar e reintroduzi-los na servidão. Pois repito: perturbar os mais pobres em seu pensamento, usando-os como informantes, em vez de encorajá-los a desenvolver seu próprio pensamento em um ato verdadeiramente autônomo, é escravizá-los. Especialmente porque, através de seu próprio pensamento, eles estão quase constantemente em busca de sua história e identidade e somente eles têm acesso direto a uma parte essencial das respostas às suas perguntas. Estas perguntas sobre sua história e identidade, muito mais do que sobre suas necessidades ou mesmo seus direitos, eles se perguntam por que sabem, talvez confusa, mas profundamente, que é através destas perguntas que eles encontrarão o caminho para sua libertação.

Não quero dizer que estávamos errados ao falar com eles sobre seus direitos ou ao perguntar-lhes sobre suas necessidades. Mas tais abordagens só podem ter um significado libertador para eles na medida em que as trocas se situam nesta perspectiva de compreensão de sua identidade histórica, que é a única que pode ajudar a torná-los sujeitos e senhores de seus direitos e necessidades. No entanto, é preciso admitir que nem sempre é assim. Por exemplo, durante todo o período da chamada “Guerra contra a Pobreza” nos Estados Unidos, não vimos uma única pesquisa histórica sobre os chamados “hard-core”[1] pobres, muito menos um estudo desse tipo. Mesmo na Grã-Bretanha, um país que consideramos o mais importante do mundo, não temos visto uma única pesquisa sobre os chamados pobres “hard-core”.

Mesmo na Grã-Bretanha, um país que consideramos exemplar em sua fidelidade à pesquisa sobre a pobreza, mesmo durante a grande era da chamada sociedade do bem-estar, faltam a pesquisa histórica e a pesquisa sobre identidade. Os pobres só têm uma identidade em termos de suas necessidades, em termos do que lhes falta. Se chegamos a este ponto, é certamente devido, em parte, a um grande respeito pelos pobres por parte dos pesquisadores, à preocupação deles em não os separar ou arriscar sua segregação. Mas será isto correto e sensato, na medida em que sua identidade histórica é de incansável resistência e imensurável dignidade?

Mas será isto justo e sensato, dado que sua identidade histórica é uma identidade de resistência incessante e dignidade imensurável; dado que é uma identidade que também leva uma mensagem essencial a toda a sociedade?

As famílias mais pobres do Movimento nos ensinaram que falar com elas apenas sobre suas necessidades, reduzindo-as aos “indicadores sociais” que as caracterizam segundo a pesquisa científica, sem ajudá-las a entender sua história e personalidade comuns, ainda é uma forma de prendê-las. Na verdade, são estas famílias que vêm ao Movimento dizendo não: “Explique-nos”, mas “Ajude-nos a pensar” e alguns acrescentam, e há cada vez mais deles dizendo: “Precisamos pensar, porque eles nunca serão capazes de entender”.

IV- Apoiar e promover o pensamento do Quarto Mundo 

Cabe a nós, a vocês, pesquisadores universitários, aprofundar e explicar esta lição que o Quarto Mundo nos dá sobre seu direito de que se reconheça este campo de pensamento e conhecimento autônomo. Cabe a nós, a você, encontrar a maneira de apoiá-los em seus esforços de reflexão. Pois, se bem o Quarto Mundo indica claramente que quer ir até o fim de sua própria reflexão, nunca nos disse que não precisa de ajuda neste processo. Pelo contrário: “Vocês que aprenderam a refletir, ensinem-nos” é um pedido que continua voltando, onde quer que nossas equipes estejam baseadas. Seja na Guatemala ou na Suíça, em Nova Iorque, Bangkok ou nas favelas de Londres, as pessoas mais pobres pedem a presença não de professores (veem muitos deles), mas de homens e mulheres inteligentes e competentes, capazes de fornecer os meios de pensar sem se infiltrarem no pensamento dos outros.

Não é seguro que os meios e métodos, a pedagogia deste tipo de abordagem sejam suficientemente conhecidos. Não por falta de precursores neste campo, mas talvez porque os projetos realizados em nome de uma ou outra pedagogia da “conscientização” que pudemos estudar, na América Latina, na Índia e mesmo na Europa, parecem quase sem exceção deixar de fora os mais pobres. Seja em aldeias indígenas na Colômbia, aldeias intocáveis na Índia, uma “favela” em Calcutá ou uma região pobre em Portugal, os habitantes mais pobres são encontrados nas próprias margens destes projetos. Talvez estes projetos também nos levantem questões por causa da linguagem e conceitos curiosamente ocidentais que eles parecem transmitir nas regiões mais remotas do Extremo Oriente, mesmo em aldeias empoleiradas em altos planaltos, longe de qualquer civilização ocidental, na Bolívia. Foram os próprios habitantes que inventaram o vocabulário familiar aos nossos ouvidos ocidentais: “relações de poder”, “exploração do homem pelo homem”, “luta de classes”… ? Não teriam eles inventado nada mais do que nós, não seriam eles capazes de usar palavras nascidas de sua própria civilização?

Pensamos que nosso comitê poderia ter uma palavra a dizer sobre este assunto, que seria capaz de destacar as condições para um apoio autêntico ao pensamento dos pobres, capaz de reconhecer projetos que realmente promovam o desenvolvimento do conhecimento independente específico do Quarto Mundo. E também acreditamos que nosso comitê poderia e deveria revelar a importância do pensamento dos pobres, não apenas para sua própria participação na luta contra a exclusão, mas para toda uma sociedade que deve encontrar a vontade e os meios para combatê-la. Era disto que estávamos falando quando fizemos a pergunta no início: de que conhecimentos necessita nossa luta comum?

Era nisto que eu estava pensando quando disse que, sem o conhecimento que os mais pobres possuem, a pesquisa universitária corre o risco de constituir um conhecimento demasiado parcial e carente precisamente daquilo que poderia torná-lo revigorante, provocador de ação e de luta. Sem querer me aventurar em especulações filosóficas ou considerações de psicologia social, deixe-me simplesmente declarar as duas razões pelas quais, na experiência do Movimento, a palavra dos mais pobres provoca ação, sendo todos os outros conhecimentos meramente de apoio a este respeito.

Logo de início, em um mundo onde os apelos à luta se multiplicam por todos os lados, ao contrário do que se poderia pensar, não são as causas menores que levam nossos contemporâneos a se comprometerem de forma séria e sustentável. Nossos concidadãos querem se comprometer com o essencial, ou seja, com o sofrimento e a esperança dos totalmente excluídos. É por ter denunciado as consequências extremas da pobreza sem tentar revesti-las de açúcar que o Movimento tem conseguido ganhar força e crescer.

Mas somente os mais pobres conhecem tais consequências extremas. Somente eles conhecem toda a injustiça, toda a negação dos direitos humanos, todo o sofrimento da extrema pobreza. Somente eles sabem o que precisa mudar no coração e na mente, nas estruturas e no funcionamento de nossas democracias. As conclusões dos estudos acadêmicos que conseguimos reunir ao longo dos últimos 25 anos são apenas um fraco reflexo disso, uma mensagem distorcida, se ouso dizer.

Além disso, é somente quando vemos a totalidade do que as famílias do Quarto Mundo nos comunicaram que podemos perceber que sua mensagem não é marginal, mas, pelo contrário, essencial, central e, ousamos dizê-lo, profética. Porque diz tudo sobre o que nossas sociedades não são e tudo sobre o que elas deveriam ser. Alguns de vocês se lembrarão de nossos esforços para que esta ideia fosse aceita dentro da Associação Sociológica Internacional nos anos 60. Renovamos nossos esforços no “Programa Europeu de Pesquisa e Ação Piloto de Combate à Pobreza” nos anos 70. O Movimento propôs um projeto para estudar formas e meios de permitir que as pessoas mais pobres da Comunidade Europeia falem por si mesmas, em vez de ter que esperar que os pesquisadores falem por elas. Os representantes do governo na época ainda não consideravam este projeto como de interesse imediato.

Em nossa experiência, porém, é o fato de termos permitido que o Quarto Mundo falasse e dissesse suas próprias verdades que nos rendeu grande apoio em todo o mundo. Somos apenas uma simples organização não governamental. Se esta organização foi capaz de durar e se expandir, não foi porque a mensagem dos mais pobres pode convencer porque é irrefutável em virtude de sua própria natureza?

Mas novamente, o que parece importar, sempre nesta experiência de um Movimento confrontado dia a dia com as realidades de uma luta, é que nossos concidadãos ouçam a própria voz dos mais pobres, sua palavra ao invés de sua tradução através de um estudo acadêmico. Não deveríamos ter a simplicidade de admitir isso? É o conhecimento de que, neste Movimento, todos podem ouvir esta palavra e que todo o Movimento tem a tarefa de transmiti-la que lhe rendeu o apoio político que tem sido capaz de atrair.

O pensamento dos mais pobres, essencial para compreender a exclusão, as palavras dos mais pobres, essencial para encorajar os concidadãos a lutar: não é para sua reabilitação que nosso comitê deve dedicar pelo menos parte de suas energias? A questão de seu lugar surgirá hoje quando discutirmos o seminário “Quarto Mundo na África”. Ela surgirá novamente amanhã quando discutirmos o significado das políticas europeias de combate à pobreza nos Estados-Membros da Comunidade Europeia. E a mesma questão surgirá novamente, em suas dimensões mais profundas, quando na sexta-feira, com nossa amiga, a professora Jona Rosenfeld, falaremos sobre as alianças, as “parcerias” que uma luta contra a exclusão implica.

Portanto, a questão se relaciona ao conjunto do nosso trabalho durante os próximos três dias. Mas é ainda mais porque nos parece ser parte integrante da razão de ser do Comitê, bem como de suas tarefas de longo prazo, que pensamos em elevá-lo nesta primeira hora de nossa reunião.

V – O Conhecimento das Equipes de Ação 

Há alguma necessidade de ampliar nossas observações iniciais sobre a necessária autonomia de conhecimento de homens e mulheres em ação? O que acabo de dizer sobre os direitos do Quarto Mundo a este respeito, obviamente, também se aplica a eles. Eles têm que desenvolver uma maneira necessariamente única de pensar sobre a ação, sobre as incertezas e impasses, as reações e mudanças, as novas ideias e ações que sua presença e suas intervenções provocam. Um pensamento que também precisa ser apoiado por pessoas de fora, competentes. Mas o faz enquanto permanece autônomo. Pensamento que é livre para perseguir seus próprios objetivos. É óbvio que os responsáveis pela ação precisam deste apoio para cumprir seus compromissos. Assim como parece óbvio que o Quarto Mundo precisa ter, ao seu lado, equipes livres e capazes de reflexão autônoma.

Certamente, como fazemos com as pessoas mais pobres, podemos fazer das pessoas em ação e de suas atividades um objeto de pesquisa. Como já dissemos, podemos até mesmo tentar avaliar os resultados de seus esforços para eles. O que me parece preocupante, entretanto, é que os estudos acadêmicos, que são tentativas de captar a ação do exterior, não podem de forma alguma substituir o conhecimento que a ação deve ter de si mesma e para si mesma. Este continua sendo um campo de difícil acesso para o pesquisador, pelas mesmas razões que o acesso à realidade vivida dos pobres continua difícil.

Sem dúvida, vocês concordarão que o pensamento da ação sobre si mesma também é um componente do conhecimento global e mobilizador do qual necessitamos para nos tornar capazes de agir. A sociedade circundante precisa deste terceiro componente. Precisa de exemplos de cidadãos que se comprometam, e tem necessidade de entendê-los, tanto quanto tem necessidade de conhecimento acadêmico. Depois da voz dos mais pobres, não é, de fato, a ação que pode ser comunicada e que se comunica, que melhor encoraja a ação? Não é isto que pode inspirar aos outros o desejo e a coragem de agir por sua vez?

Aqui novamente, parece-me que os pesquisadores têm um serviço incalculável a prestar, comprometendo-se a reabilitar e apoiar o conhecimento que não é seu próprio.

Para concluir: Um comitê mobilizador

Reabilitar, apoiar, ajudar a desenvolver e consolidar novas abordagens do conhecimento, e finalmente conseguir a colaboração entre pesquisadores, populações empobrecidas e equipes de ação – este nos parece ser um papel fundamental que o Quarto Mundo significa para os pesquisadores universitários. Se o Comitê concordasse, aprofundaríamos este papel nos anos vindouros.

Este papel não exclui outros, é claro, mas me parece mais necessário e mais inovador do que outros, neste momento da história. Isto porque queremos que nosso Comitê se torne, apesar de seus modestos meios, uma força motriz, um mobilizador de pessoas.

[1] Literalmente, o termo “hard-core” (núcleo duro) se refere às populações mais difíceis de alcançar.

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